Há muitas maneiras de dar adeus. Damos adeus aos pais, aos mestres; quando viajamos, e no derradeiro momento da vida também damos adeus ao que parte.
Neste fim de ano estamos envolvidos por um adeus político. O nosso Presidente da República vai dar um adeus ao Palácio do Planalto e ao exercício do poder; e os cidadãos vão dar adeus a quem os governou durante oito anos.
Lula já usou a expressão “rei morto, rei posto”. Expressão um tanto macabra e fúnebre para a transmissão de um poder democrático. Por esta referência à morte do rei, o adeus a Lula se torna análogo ao momento de um pai, às beiras da morte, que chama seus filhos e lhes solicita que não desperdicem a herança que ele lhes deixa.
O pai quer certificar-se da transmissão de sua herança. E os filhos dão o adeus a seu pai querido. Mas o que significa dar adeus a alguém? A própria etimologia da palavra nos indica que “dar adeus” a alguém é entregá-lo nas mãos de Deus. Até o momento em que a pessoa estava próxima, que nos preocupávamos com ela, de certa forma, éramos responsáveis por ela.
Agora que ela parte, estamos livres dela e a entregamos nas mãos de Deus. Mas, neste adeus, permanece algo conosco. O pai, que parte, chama seus filhos para lhes lembrar que deixa uma herança, um tesouro. Ele não sabe se este tesouro realmente vai ser para o bem dos filhos, ou se produzirá desentendimentos. Por isto, nem sempre as heranças deixadas pelos pais são benéficas. Inclusive, podem ser “heranças malditas”.
Neste sentido, Lula, certamente, deixará uma herança. Mas as avaliações desta herança são polêmicas. Será ela uma herança benéfica ou maldita? Os acontecimentos no Rio de Janeiro nos mostram que Lula, apesar de ter providenciado pratos de comida para muita gente, o que é louvável, pois quem dá um prato de comida a quem tem fome deve ser louvado, não deixa o Brasil pacificado social e politicamente.
A linguagem lulista, no mínimo, sempre foi ambígua. “Brasil terá trem-bala, Brasil será uma potência econômica, Brasil será um país rico com o pré-sal, Brasil será sede da Copa, dos Jogos Olímpicos; milhões de cidadãos foram tirados da zona de pobreza, temos saúde quase perfeita, a educação vai bem, etc. etc...”.
De repente somos confrontados com uma guerra do tráfico, do contrabando de armas e munições, e o mundo inteiro fica perplexo, pois o marketing do Presidente Lula e do Brasil, às vésperas de ser uma grande potência, se mostra como um país de favelados, de miseráveis em situações subhumanas que vivem do tráfico, do contrabando; um país de analfabetos, de desocupados; um país com uma das maiores desigualdades sociais, um escândalo; um país com uma justiça lentíssima e ineficiente; um país com políticos e funcionários corruptos e com linguagem mentirosa; um país com partidos políticos sem ideologia, sem projetos e sem ética; um país de agiotagem, com altos juros para cheques especiais e com cartões de crédito que cobram até 15% de juros por mês. Um escândalo!
Criaram-se mil instituições que se apresentam como defensoras dos cidadãos, e quando se precisa delas nenhuma funciona. E o que os donos dos poderes da República fazem diante deste quadro? Compram aviões de cinquenta milhões de dólares para viajarem pelo mundo; se propõem a comprar os mais sofisticados aviões de guerra, para fazer guerra contra quem? querem ser representantes do povo trabalhador, mas se hospedam exclusivamente em hotéis de cinco estrelas; viajam em jatinhos alugados...
E onde estão as iniciativas para uma distribuição de renda justa , adquirida pelo trabalho digno com salários justos, e não por esmolas? Onde estão os projetos de desfavelização do Brasil?
Diante desta situação, cada vez mais brasileiros entram na marginalidade. E não são apenas os narcotraficantes. São os funcionários públicos, que manipulam licitações; os empresários que não pagam justamente seus trabalhadores, e sonegam impostos; que financiam campanhas políticas, comprando assim os políticos para defenderem seus interesses.
O adeus a uma situação geralmente prepara outra. Na história temos diversos exemplos neste sentido. Quando cortaram a cabeça de Luís XVI, os revolucionários da França prepararam o chão para o surgimento do Imperador Napoleão; o assassinato do Tzar e da Tzarina pelos soviets preparou a vinda de Stalin.
Se o adeus ao pai, ao mestre, ao rei, ao presidente não for cuidadoso e equilibrado, este adeus pode preparar o surgimento de mestres, reis e situações piores do que aquelas das quais nos despedimos. Por isto todo adeus deve ser também um adeus aos deuses do poder.
E “deuses” políticos são ideologias equivocadas, ações de poder inadequadas; valores e desvalores. Diante disto, estamos convidados a dar um adeus a Lula, o que significa entregá-lo nas “mãos de Deus”.
E que a sua herança, a “Era Lula”, não nos deixe uma “herança maldita”, incapaz de superar tragédias como a do Rio de Janeiro.
Inácio Strieder é Professor de Filosofia - Recife- PE.
Publicado no Recanto das Letras em 27/12/2010
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