terça-feira, 7 de dezembro de 2010

O que foi, sem nunca ter sido

Numa espécie de viúva Porcina, em Roque Santeiro, Tancredo Neves foi considerado presidente do Brasil; na verdade, morreu sem tomar posse no cargo. Assim, foi, sem nunca ter sido

Tancredo de Almeida Neves foi acometido de mal súbito no dia em que ocorreria a sua posse, em 15 de março de 1985, e morreu 38 dias depois. Mas isso não impediu que passasse para a história como o vigésimo terceiro presidente da República Federativa do Brasil -- um arranjo político costurado às pressas para legitimar a sucessão e posse de seu vice, o maranhense José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, dito José Sarney, no mandato de Presidente da República.

Uma lei sancionada menos de um mês depois “presidencializou” Tancredo e convalidou o arranjo jurídico da sucessão presidencial. A lei 7.465 traz em seu artigo 1º: o cidadão Tancredo de Almeida Neves, eleito e não empossado, por motivo  de seu falecimento, figurará na galeria dos que foram ungidos pela Nação brasileira para a Suprema Magistratura, para todos os efeitos legais.

Na verdade, o reconhecimento post mortem não passa de aventura jurídica e poucos, por letrados que sejam, conseguem entender o que está escrito e apenas intuem o seu significado. E como intuem. Afinal, que diabos significa “ser ungido pela nação brasileira para a Suprema Magistratura, para todos os efeitos legais”? Um quase-presidente da República na Magistratura? O doutor Freud, do alto da sua sabedoria, conhecedor das misérias humanas, talvez enxergue algo incestuoso nessa história toda.

Tancredo Neves desta forma ganhou uma foto na galeria dos Presidentes da República. É o único que não tem data de posse e data de término de mandato, bem diferente de seu vice que, por assim dizer, empossou-se no lugar do titular, aquinhoado com uma sucessão que não houve. Tomou posse no primeiro dia do mandato e ficou até o seu final. Lucro para todos os brasileiros, que tiveram a honra incomum de possuir dois vigésimos terceiros presidentes.

Sarney exerceu a presidência da República sem ter um vice. Nas suas ausências, entretanto, foi substituído pelos suplentes legais, os presidentes da Câmara dos Deputados, do Supremo Tribunal Federal e do Senado Federal. Iniciou o mandato com austeridade e transformou cada brasileiro em “fiscal do Sarney” quando implantou o Plano Cruzado, que pretendia pôr fim à inflação que assolava o país. A carne e outros gêneros alimentícios sumiram das prateleiras, Romeu Tuma foi chamado para confiscar bois no pasto. Logo tudo voltou a ser como antes e o governo descambou para a vala comum.

Muitas são as indagações que ainda persistem acerca desse período da nossa história recente. Há quem sustente que Tancredo foi assassinado quando perceberam que a sua vitória seria inevitável, permitindo que José Sarney, do PFL, partido fundado por dissidentes do governista PDS, chegasse ao poder, que assim continuaria nas mãos daqueles que apoiavam o regime militar.

Ferido a bala –atentado que teria sido presenciado pela jornalista Glória Maria, da Rede Globo, e que depois teria sido defenestrada para a Finlândia– ou envenenado junto como seu mordomo, que teria morrido na mesma época e com os mesmos sintomas, como querem os plantonistas de teorias conspiratórias, a verdade é que o primeiro presidente civil brasileiro, eleito desde o golpe militar de 64, mas não empossado, agonizou por longos 38 dias e sucumbiu acometido de diverticulite depois de sete cirurgias, no dia de Tiradentes, em 21 de abril de 1985, como herói e em meio a uma grande comoção nacional.
O Blog de Caraguá - k

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