Por Marcelo Pellegrini, na revista Carta Capital
"Uma série de ilegalidades se
embrenham na base do sistema de rádios e TVs no Brasil, afrontando a
Constituição e gerando prejuízos para a liberdade de imprensa, conforme aponta
o relatório da ONG internacional "Repórter Sem Fronteiras". A lista
de ilegalidades combinada com a frouxa fiscalização por parte do governo
federal resulta no surgimento de oligopólios e em uma situação de pouca
diversidade de vozes e ideias, algo danoso à democracia e à representação dos
diversos grupos que compõem a sociedade.
Segundo a Constituição, cabe à União,
por meio do Ministério das Comunicações, conceder a empresas privadas, por meio
de concessões, o direito de possuir um canal de rádio ou televisão no Brasil.
Essas regras existem porque, ao contrário de jornais, revistas e sites, cuja
existência é, em tese, ilimitada, há um limite físico para a existência de
emissoras de rádio e televisão, determinado pelo espectro das faixas de
frequência.
Para ter o direito à concessão, as
emissoras devem vencer um processo licitatório e cumprir uma série de regras em
relação a seu conteúdo e programação, a fim de garantir a pluralidade e a
diversidade da sociedade brasileira. A fiscalização do cumprimento dessas
regras, no entanto, nem sempre é realizada pelo Ministério das Comunicações,
conforme aponta o relatório do "Repórter Sem Fronteiras", o que
contribui para falta de representação de minorias nas telas nacionais.
Diante do descaso do governo, o setor
de rádio e televisão no Brasil é praticamente uma terra sem lei, realidade que
o Ministério Público Federal e organizações da sociedade civil, como o
"Intervozes", parceiro de "CartaCapital", tentam mudar.
A seguir, conheça e entenda alguns
dos principais problemas nos quais estão envolvidas as emissoras de rádio e
televisão brasileiras.
1 - Concentração de mídia e a falta de conteúdo local
Em conjunto, a Constituição e o
Decreto-Lei 236, de 1967, proíbem a formação de oligopólios na radiodifusão e
colocam barreiras na veiculação de conteúdo unificado em todas as regiões
brasileiras, como maneira de garantir a produção local e diversificada de
conteúdo. A realidade mostra que essas exigências não são cumpridas.
Atualmente, os grupos Globo, SBT,
Record e Band dominam 69,4% da audiência televisiva. Os números derivam do fato
de esses canais terem empresas afiliadas que, em sua maioria, retransmitem e
reproduzem a grade de programação das empresas-sede, as chamadas
cabeças-de-rede. Por meio das afiliadas, a Globo, maior cabeça-de-rede do
Brasil, transmite sua programação para 98,6% do território nacional, seguida
por SBT (85,7%), Record (79,3%) e Band (64,1%).
Apesar da proibição de que
concessionárias estejam "subordinadas a outras entidades que se constituem
com a finalidade de estabelecer direção ou orientação única", as
cabeças-de-rede têm significativo domínio sobre a produção de conteúdo. Um
estudo do "Observatório do Direito à Comunicação", de 2009, mostrou
que 90% dos conteúdos veiculados pelas afiliadas são produzidos pela cabeça-de-rede.
Na prática, o domínio se dá por meio
de contratos entre as cabeças-de-rede e as afiliadas que driblam as regras
sobre a quantidade de geradoras de sinal de grande alcance permitidos por
empresa de televisão: são cinco por proprietário em todo o País, sendo no
máximo duas por Estado. Como o Ministério das Comunicações não estabeleceu
regulações a respeito da propriedade por pessoas físicas e jurídicas, há casos
de pessoas e empresas que extrapolam o limite do decreto de 1967, controlando
mais de cinco geradoras nacionalmente e mais de duas por estado.
2 - Posse de veículos de mídia por políticos
O artigo 54 da Constituição Federal
proíbe deputados e senadores de possuírem empresas que firmem ou mantenham
contratos com autarquias, empresas públicas ou concessionárias de serviço
público. O último caso enquadra as emissoras de rádio e televisão, mas ainda
assim mais de 40 deputados federais e senadores controlam diretamente pelo
menos uma emissora de rádio ou televisão em seu estado de origem, fenômeno
conhecido como coronelismo eletrônico.
Desde 2011, tramita no Supremo
Tribunal Federal uma ação, elaborada pelo Intervozes e pelo PSOL, que pede a
declaração de inconstitucionalidade à concessão de outorgas de radiofusão a
emissoras controladas por políticos. Além do artigo 54 da Constituição, a ação
também entende que a prática do coronelismo eletrônico viola o direito à
informação (artigos 5º e 220); a separação entre os sistemas público, estatal e
privado de comunicação (art. 223); o direito à realização de eleições livres
(art. 60); o princípio da isonomia (art. 5º); e o pluralismo político e o
direito à cidadania (art. 1º).
3 - Vendas de concessão: o caso MTV
A Lei 4.117/62 e o Decreto 52.795/63
proíbem, segundo entendimento do Ministério Público Federal, que uma concessão
pública de radiodifusão seja repassada a terceiros sem uma nova licitação. Isso
porque canais abertos são um serviço público e, por isso, o uso das frequências
deve ser disputado em concorrência aberta.
Ainda assim, em dezembro de 2013, o
"grupo Abril" vendeu a frequência que abrigava a MTV Brasil para a
empresa "Spring" por [290 milhões de reais]. Sob novo comando, o
canal aberto tem toda a sua programação ocupada por conteúdo produzido pela
"Igreja Mundial do Poder de Deus".
Para o MPF, tratou-se de negociação
inconstitucional. "Uma empresa que é concessionária de um serviço público
possui duas opções: explorar o serviço ou restitui-lo para a União. Nesse caso,
o "grupo Abril" vendeu o direito de explorar o serviço para outra
empresa, o que entendemos ser inconstitucional", afirma o procurador Pedro
Antonio de Oliveira Machado, do MPF-SP. Segundo ele, a controvérsia envolve o
uso da frequência, e não a venda da marca MTV, que já foi devolvida à empresa
proprietária e continua sendo usada na TV fechada. Atualmente, o MPF recorre de
um parecer negativo da Justiça a respeito de uma ação cautelar sobre o caso.
Outra ação que visa anular a venda da concessão ainda está em desenvolvimento.
4 - Subconcessão
A venda de espaço de programação para
terceiros, a chamada subconcessão, é outra ilegalidade. O arrendamento de parte
da programação é prática comum entre as emissoras de tevê e ocorre sob a vista
grossa do Ministério de Comunicações. De acordo com o mais recente levantamento
sobre o tema, feito pelo "Intervozes" em 2014, a Band vendia 19% de
sua programação, a Record, 21%, a Gazeta, 23%, RedeTV, 50% e Rede 21, quase
toda sua programação: 92%. A maioria desses espaços são vendidos para igrejas,
prática que é alvo de uma ação do MPF.
As emissoras alegam que a venda de
espaço em sua programação não se caracteriza como subconcessão, mas como uma
forma de publicidade. Entidades da sociedade civil, contudo, refutam esse
argumento afirmando que, mesmo a publicidade, com essas proporções de ocupação
da programação, seria ilegal. O fundamento para isso está no "Código
Brasileiro de Telecomunicações", que estabelece limite à publicidade
comercial em cada canal de televisão. Segundo a lei, o tempo destinado à
publicidade comercial não pode ultrapassar 25% da duração total da programação
diária.
5 - Descumprimento do percentual de conteúdo educativo na programação
O Código Brasileiro de
Telecomunicações (CBT) determina que as emissoras de radiodifusão destinem ao
menos 5% de sua programação para a transmissão de notícias e reservem 5 horas
semanais para programas educacionais. Muitas empresas, contudo, não respeitam
esses parâmetros.
Produzido em 2014 pela Agência
Nacional do Cinema (Ancine), o "Informe de Acompanhamento do Mercado da TV
Aberta" revelou que a categoria "Entretenimento" ocupou 49,4%
das grades de programação da TV aberta de São Paulo, seguida pelos grupos
"Outros" (20,1%), que engloba os programas religiosos;
"Informação" (19,3%), e "Publicidade" (7,7%, sem considerar
comerciais e chamadas). O grupo "Educação" aparece com 3,5%.
O mesmo levantamento apontou a
inexistência de programas educativos na Record e no SBT. Na Band e na Rede TV!,
menos de 1% da programação era dedicada à educação. Na Rede CNT e na TV Gazeta,
eram menos de 2%. De acordo com a Ancine, o percentual mínimo era respeitado
somente pela Globo (5,6%) e pelas emissoras públicas: Cultura (9,2%) e TV
Brasil (12,5%).
6 - Emprego do veículo para a prática de crime ou contravenção
Uma pesquisa da "Agência de
Notícias dos Direitos da Infância" (Andi), realizada em 2015, em parceria
com o "Intervozes", o Artigo 19 e o Ministério Público Federal,
verificou que o conteúdo de programas policialescos, veiculados pelas
principais emissoras do país violam pelo menos 12 leis brasileiras e 7
dispositivos multilaterais em vigor no país, como a Constituição e a Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
Apesar das diversas e reincidentes
infrações, o Ministério das Comunicações adota uma postura omissa em relação à
fiscalização desses programas. O exemplo mais recente é a denúncia, encaminhada
pelo coletivo "Intervozes" ao ministério, sobre a transmissão, ao
vivo, de uma perseguição policial a dois suspeitos, que terminou com um deles
sendo alvejado pela PM. As imagens foram veiculadas pela Rede Record e pela TV
Bandeirantes de São Paulo.
No programa "Cidade
Alerta", da Rede Record, o apresentador Marcelo Rezende fez declarações
que afrontam os Direitos Humanos e a legislação brasileira, como “atira, meu
filho; é bandido”. Apesar disso, o Ministério das Comunicações limitou-se a
dizer que analisa a denúncia, mas que o Poder Judiciário deveria ser procurado
em busca de reparação."
FONTE: escrito por Marcelo
Pellegrini, na revista CartaCapital, com informações da cartilha "Caminhos
para a luta pelo direito à comunicação no Brasil", produzida pelo
"Intervozes". Transcrito no "Blog do Miro"(http://altamiroborges.blogspot.com.br/2015/11/radio-e-tv-no-brasil-uma-terra-sem-lei.html).
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