Por Luiz Flávio Gomes
Diante de escândalos tsunâmicos como o
da Petrobra$, que desnudam em toda sua inteireza o lado canalha de alguns
membros da classe dominante (a canalhice, de qualquer modo, não é apanágio
exclusivo dessa classe), uma das coisas que mais impressionam é o discurso
legitimador da canalhice (sobretudo quando ela é engendrada por uma
poderosíssima organização criminosa), verbalizado de forma plácida e diáfana,
para não dizer macunaímica (herói malandro), no sentido de que a corrupção (a
sonegação, o malfeito, a malandragem) se trata de algo “natural”, “comum”, algo
enraizado na “tradição” e nos “costumes” do povo brasileiro.
Lula, em 1995, quando eclodiu o
mensalão do PT (depois do mensalão do PSDB), reagiu (em Paris) dizendo que
todos os partidos políticos fazem caixa 2; a corrupção é coisa da “nossa cultura”
(José Eduardo Cardozo); “Não há no Brasil um gestor público que não tenha um
processo” (Dalva Dias, PDT-SC).
02. Nunca antes neste país se tornaram
tão necessários dois esclarecimentos: (a) a corrupção não é apenas um problema
individual (pessoal, ético), mas é, antes de tudo, isso; (b) a corrupção,
sobretudo daqueles que dominam/governam a nação, é uma canalhice maligna de
magnitude hecatômbica porque afeta também (1) o mercado e a economia (mascara a
concorrência e bilhões de reais são desviados do crescimento do país), (2) a
política e a democracia (tornando-a ilegítima), (3) a Justiça e o império da
lei (assim como a força das instituições) assim como (4) a própria sociedade
(canaliza a riqueza para os mais ricos e desmorona o chamado “capital social”,
fundado na confiança necessária para o bom funcionamento societal).
03. Das nefastas consequências da
corrupção (para a economia, política, império da lei e sociedade) vamos cuidar
em outro artigo. Dela, como problema, desde logo, individual (ético), vamos
tratar em seguida, pedindo licença para revisitar algumas noções elementares de
ética e de moralidade transmitidas pelos professores da área. Triste e
degenerada é a sociedade em que um político ou administrador público afirma que
o malfeito e a corrupção é coisa de “todo mundo”, é da tradição, dos costumes.
Para começar: não é verdade que “todo mundo” seja corrupto.
[continue lendo....]
Toda época tem sua estrutura moral
(Aranguren), ou seja, suas pautas de conduta, seus ideais, seus fins, seus
valores. A vida, ainda que marcada por debates e embates, não pode se
desconectar de algumas margens limitadoras, sob pena de se embrenhar para o
mundo da corrupção, do mau-caratismo, da malandragem, da desonestidade, enfim,
da falta de moral (e de ética). Em nenhum instante da nossa vida, mas sobretudo
quando participamos da vida política da cidade ou do país (da “polis” ou da res
pública), podemos admitir a mancha ou a mácula do mau-caratismo, do canalhismo.
04. A corrupção é generalizada no
nosso país (isso é verdade: FHC, por exemplo, admitiu numa entrevista à Folha
que houve corrupção para aprovar a Emenda da Reeleição, em 1996), mas nem todo
mundo é corrupto (Renato J. Ribeiro); de outro lado, ninguém é obrigado a se
sujeitar a padrões nitidamente podres ou canalhas (recorde-se que um dos
sentidos da palavra corrupção é descrever um fruto podre).
Ao “clube” dos empreiteiros (para se
citar um exemplo), que agora andam dizendo que foram “extorquidos”, faltou
precisamente uma postura ética firme contra a tradição, o costume, a cultura.
Por força da ética, não somos obrigados a seguir os costumes imorais (a
canalhice) enraizados em algumas práticas econômico-financeiras, por exemplo,
muito menos na tradição política imoral do nosso País. Existiria por acaso
alguma força sobrenatural com poder para levar a maioria dos agentes
econômico-financeiros, políticos e públicos (há exceções, claro) a se
comportarem (quase sempre) de maneira irregular? Não.
05. Todas as vezes que nos deparamos
com uma tradição ou costume ou com uma ordem externa, devemos prestar atenção
no seu conteúdo e na sua natureza. Não podemos concordar muito menos praticar a
canalhice. A Ética diz respeito ao foro interno da nossa vontade (e liberdade).
Somos livres (em geral) para decidir pelo bem ou pelo mal (pelo certo ou pelo
errado – veja Savater). Podemos dizer “sim” ou “não” (veja Octávio Paz). O
preço que pagamos por contarmos com essa liberdade é a responsabilidade.
Pelos atos que praticamos devemos ser
sempre responsáveis. E nesse caso nem a ordem externa nem a tradição nem os
costumes nos absolve. Nós, seres humanos, somos distintos dos animais (das
plantas e dos minerais) porque contamos (dentro de certas medidas) com o que se
chama liberdade (ainda que condicionada, mas liberdade).
O ato de corromper ou de ser
corrompido (que é uma canalhice) é fruto dessa liberdade, por isso que a
corrupção é, antes de tudo (mas não somente), um problema ético e moral. Se
cada um de nós elevássemos o padrão ético (como os suecos fizeram em 1841, por
exemplo), teríamos (com certeza) menos corrupção e menos violência no país.
Saiba
mais:
06. Os animais não podem alterar seus
códigos biológicos (são o que são e não conseguem alterar o seu caminho). Fazem
somente o que estão programados naturalmente para fazer. As formigas são da
forma que são e não é facultado a cada uma delas alterar sua natureza.
Os animais não podem ser reprovados
porque não sabem se comportar de outro modo (Fernando Savater). Ou seja: não
contam com autodeterminação (capacidade de entender e de querer). Os seres
humanos também somos programados (biologicamente), mas conjuntamente com a
constituição biológica também contamos com uma programação cultural, que é guiada,
em grande parte, pela nossa autodeterminação. Por isso é que “sempre podemos
optar finalmente por algo que não esteja no programa. Podemos dizer “sim” ou
“não”, quero ou não quero. Nunca temos um só caminho a seguir. Temos vários”.
07. "Somos indivíduos livres e
nossa liberdade nos condena a tomarmos decisões durante a nossa vida” (Sartre).
Premissa básica da convivência humana é que não podemos fazer tudo que
queremos. Por mais poderoso que alguém seja, a vida não pode seguir os seus caprichos.
Não existe liberdade sem limites e sem responsabilidade.
Embora dentro de certos parâmetros,
podemos inventar e eleger (em grande parte) nossa forma e nosso estilo de vida.
Mas também podemos nos equivocar (isso é certo – errare humanum est). A essa
arte de viver bem (com expurgo da canalhice) chamamos de ética que, na verdade,
não significa apenas a “arte de viver bem”, senão a “arte de viver bem
humanamente” (respeitando nossos semelhantes, ou seja, ou ostros caminhantes,
os direitos humanos, os valores básicos de convivência etc.). Tratar nossos
semelhantes (os outros caminhantes) como “insetos” (ou ignorá-los
completamente, como é a postura da indiferença) significa ferir profundamente
os preceitos éticos que norteiam nossa existência.
08. Uma coisa é lutar pela
sobrevivência, estando isolado em uma ilha (como foi o caso de Robinson Crusoé,
criado por Daniel Defoe, em 1719). Outra bem distinta é viver em sociedade (ou
seja: “con-viver” com seus semelhantes, com os outros caminhantes). Defoe (pelo
que consta na Wikipedia) “inspirou-se na história verídica de um marinheiro
escocês, Alexander Selkirk, abandonado, a seu pedido, numa ilha do arquipélago
Juan Fernández, onde viveu de 1704 a 1709. Robinson Crusoe herda desta história
o mito da solidão, na medida em que vive sozinho durante vinte e cinco anos,
antes de encontrar a personagem Sexta-Feira. O romance simboliza a luta do
homem só contra a natureza, a reconstituição dos primeiros rudimentos da
civilização humana, testemunhada apenas por uma consciência e dependente de uma
energia própria”.
09. A partir do momento em que outro
ser humano aparece na nossa “ilha” (que não é a mesma de Robinson Crusoé), não
há como não tratá-lo como semelhante (como outro caminhante). Nesse caso, surge
mais uma premissa básica de convivência: jamais podemos fazer aos outros o que
gostaríamos que não fizessem conosco (no mundo oriental, fala-se no princípio
da “ahimsa”). A Ética, a partir do momento em que temos que conviver com outros
caminhantes (semelhantes), evolui da “arte de viver bem” para a “arte de viver
bem humanamente”. É que temos que viver com os outros ou contra os outros,
porém humanamente (ou seja: entre seres humanos, como diz Savater).
O que transforma nossa vida em vida
humana é que, não estando nós numa ilha isolada, como Robinson Crusoé, somos
todos compelidos a passar todos os dias da nossa vida em companhia de outros
seres humanos, interagindo com eles, falando com eles, negociando com eles,
amando, construindo sonhos ou castelos, fazendo projetos, jogando, discutindo,
concordando, discordando, debatendo etc. Mas todos somos seres humanos (e como
humanos todos devemos ser tratados).
10. Cada dia fica mais claro no nossoo
país que nem o Estado, nem o mercado, nem o capitalismo egoísta/selvagem, nem
os políticos, muito menos os partidos, ou seja, nem o sistema político nem o
sistema econômico está cumprindo o que deveria ser feito, ao contrário, a
desconfiança é generalizada porque no lugar do que deveriam fazer eles
incrementam cada vez mais a desigualdade, a concentração do poder e da riqueza,
a contaminação, a destruição do meio-ambiente, o desemprego, a má-qualidade do
serviço público, a corrupção, a violência, os desmandos e, o que é mais
importante, “a degradação dos valores que sustentam a sociedade, onde tudo é
aceitável e ninguém é responsável” (Stiglitz).
O “cada cabeça um voto” (eixo da
democracia representativa clássica) se transformou em cada voto um dólar. Daí
todo questionamento que se faz frente à democracia vigente, marcada pelo compadrismo
espúrio entre a economia corrupta e a política assim como entre a política e a
governança. O mau-caratismo (a canalhice – um mal de todos os tempos) só pode
ser combatido com a Ética e a cidadania.
11. A corrupção sórdida que invadiu
até às vísceras a Petrobra$ equivale no plano esportivo a fazer um gol com a
mão. Trata-se de um comportamento imoral ou antiético. Gilberto Freyre, em
1938, falou da habilidade dos mulatos brasileiros no futebol, da astúcia, da
espontaneidade individual (veja Ronaldo Helal, O Globo de 02.11.12, p. 19). Na
cultura brasileira, a partir daí, fala-se no jogador competente, regular,
esforçado, assim como no astuto, no malandro.
Ambos possuem espaços na cultura
brasileira (tal qual bem notou Antonio Cândido, com sua crítica à “dialetica da
malandragem”). Também há quem admira heróis malandros (Macunaíma dá bem a ideia
disso). Isso, aliás, explicaria a atitude daqueles que apoiam o gol feito com
as mãos. Mas há atos, costumes, convenções, regras e convicções gerais que
podem ser imorais (ou más ou erradas).
Por mais que da nossa cultura faça
parte o herói malandro, é claro que não podemos concordar com a malandragem,
com o engodo, com o errado. Daí censurarmos o gol feito com a mão, que é, antes
de tudo, imoral. Ninguém pode se beneficar da malandragem.
12. Os humanos, diz o filósofo Savater
(Ética de urgência, p. 119), “somos maus o quanto nos deixam ser. Se alguém
acredita que pode fazer algo e alcançar alguma vantagem, se está completamente
seguro de que nada vai ocorrer, pois o fará”. Se o mal (a canalhice) e a
malandragem não são censurados, reprovados, tudo continua como está. Não é
verdade que a ética só vale para alguns momentos, podendo ser suspensa em
outros.
Ela nos vincula para toda a vida. Nos
concretos atos da nossa vida, quando em jogo está o (superior) plano ético,
você não tem que perguntar a ninguém o que deve ser feito: pergunte a você
mesmo (Savater). E mais, não vale ser ético somente durante um trecho da sua
vida. Por quê? Como bem disse, com toda sabedoria e sensatez, a ministra do
STF, Cármen Lúcia: “A vida é igual a uma estrada. Não adianta você dizer que
foi na reta certinho mil quilômetros e depois você entra na contramão e pega
alguém. É a mesma coisa. Você tem que ser reto a sua vida inteira. Independente
do que o outro fizer, independente de o outro atravessar a estrada. Se você
estiver certo, você terá contribuído para o fluxo da vida ser mais fácil. Isso
no serviço público muito mais”.
P.S. Participe do
nosso movimento fim da reeleição (veja fimdopoliticoprofissional. Com. Br).
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Luiz
Flávio Gomes - Professor
Jurista e professor. Fundador da Rede
de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de
Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001)
Fonte: www.jusbrasil.com.br
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