Teresinha de Oliveira Marciano Costa |
Aqui convivem pacificamente portugueses, índios, italianos,
espanhóis; turcos, argentinos, chilenos; japoneses, chineses, coreanos. Nem a
pluralidade religiosa e seus desatinos, comuns em outros continentes e motivo
de guerras fratricidas, é capaz de comprometer os ares de paz que por aqui se
respiram.
Para entender um pouco da nossa história e o desenvolvimento
econômico que insere o Brasil no rol das
potências em ascensão, principalmente depois da descoberta do vasto campo
petrolífero da bacia de Santos, é preciso reconhecer as forças que
proporcionaram essa mudança. Nesse contexto, um grupo étnico deu o máximo de
si, uma contribuição muito especial e decisiva: a raça negra.
É verdade que a presença do negro no Brasil tem suas origens
no comércio escravagista de tempos coloniais. Caraguatatuba também explorou a
mão-de-obra escrava, conforme registra o livro Santo Antonio de Caraguatatuba –
Memória e Tradições de um Povo, de Jurandyr Ferraz de Campos. Mas isso é página
virada na história e hoje o negro é alvo de reconhecimento e destaque em nosso
meio social, com a adoção de inúmeras medidas proibitivas de qualquer espécie
de preconceito de raça e banindo o racismo com o estigma do crime inafiançável
e imprescritível.
Ao longo dos 155 anos de história da nossa cidade, o negro
sempre se fez presente de forma incisiva nos mais variados ramos de atividades,
a começar pela lavoura nas fazendas que no final do século 19 e princípio do
século 20 impulsionavam a economia local, em especial o plantio da mandioca e o
fabrico de farinha.
Com a cessação das atividades rurais, o negro teve de
encontrar formas alternativas de se sustentar, buscando soluções as mais
diversas como na produção de subsistência, pesca, comércio informal, construção
civil, dentre outras. Hoje, há assentamentos quilombolas na região, uma
política encontrada com o objetivo de devolver aos afro-descendentes a terra
tirada de seus antepassados.
A cultura negra em
Caraguá
Sem dúvida, a maior batalhadora pela conscientização dos
valores do negro na cidade é Teresinha de Oliveira Marciano Costa, 59,
fundadora da Organização Não-Governamental Zambô (a palavra significa “filhos
de índios e negros”), que desde sua criação em 1979 vem tendo atuação destacada
em Caraguá.
O objetivo da ONG é promover o movimento negro e fomentar
ações de conscientização da igualdade racial em todos os segmentos. “A falta de
uma política efetiva de valorização da igualdade racial fez surgir movimento
negro, até então encontrado apenas em ações isoladas e improvisadas”, conta
Teresinha.
Teresinha também lembra que Caraguatatuba foi a terceira das
645 cidades do Estado de São Paulo a aderir ao feriado de 20 de novembro,
quando se comemora o Dia Nacional da Consciência Negra, dedicado à reflexão
sobre a inserção do negro na sociedade brasileira.
A data lembra a resistência do negro à escravidão a partir
do primeiro transporte forçado de africanos para o solo pátrio, em 1594. O dia
foi escolhido por coincidir com o da morte de Zumbi, líder do Quilombo dos
Palmares, em Alagoas, uma comunidade que agregava fugitivos da escravidão; ele
morreu lutando pela liberdade dos negros em 1695.
Em em 20 de novembro 2010, a ONG Zambô do Movimento Negro de
Caraguatatuba organizou a 13º edição da Kizomba para comemorar o Dia da
Consciência Negra, que contou com apresentações de samba-de-roda, capoeira,
hip-hop, maculelê e moçambique, além de pagode e comidas tradicionais como
acarajé e caximbada, uma espécie de bebida afrodisíaca. Kizomba significa
“festa dos negros” e faz parte do calendário oficial de eventos de Caraguá.
Teresinha informa que tem recebido apoio das autoridades
municipais para as ações em prol da comunidade negra, que consiste de
palestras, encontros, cursos e outros. O Centro Universitário Módulo também
colabora com as ações da ONG, não com reserva de vagas, mas abrindo espaços e
incentivando a realização de seminários.
Ela ainda esclareceu que o recenseamento de 2010, assim como
os anteriores, não forneceu o número de pessoas que se consideram negras em
Caraguatatuba. “Talvez esses dados ainda sejam apresentados. De qualquer forma,
estamos fazendo uma pesquisa nesse sentido, pois queremos conhecer o universo
que é objeto de nosso trabalho”, garantiu.
Indagada se “negritude” era termo pejorativo, ela diz que
não e explica: “Assumir a negritude significa conhecer a sua cultura, os seus
valores, a sua vida social como cidadão, a participação. Sabemos que existe o
racismo, o preconceito, mas o que queremos é a valorização do negro, o seu
crescimento, a elevação da sua auto-estima”.
Palestras de saúde
Teresinha esclarece que uma das ações da ONG Zambô diz
respeito à saúde. Ela explica que o negro possui características próprias e em
alguns casos essas peculiaridades se mostram mais acentuadas. “É o caso do diabetes, miomas, anemia
falciforme, hipertensão arterial (a partir dos 18 anos), glaucoma nas mulheres,
que são mais intensas no negro, uma característica até então desconsiderada nas
ações de saúde. Hoje, graças às palestras que temos promovido em conjunto com a
secretaria municipal de Saúde, que nos dá grande apoio, esse quadro está se
revertendo”, declara.
Outra questão considerada relevante foi a constatação,
através de pesquisa realizada pela secretaria de Saúde do Estado, de que as
mulheres negras eram menos tocadas que as brancas durante os exames pré-natal.
“O resultado disso foi o aumento dos índices de mortalidade infantil na
comunidade negra. Hoje essa questão está sendo enfrentada pelo movimento, que
busca conscientização nesse setor de saúde através de encontros e palestras”,
disse Teresinha.
Outro absurdo citado pela entrevistada: ainda na área de
saúde, as mulheres negras recebiam menor quantidade de anestesia durante os
procedimentos médicos. “Com isso, o sofrimento das negras eram bem maior e
desumano. Da mesma forma, estamos combatendo essa prática através da
conscientização”, garante.
Conquistas
Teresinha cita duas conquistas importantes para a
valorização dos afro-descendentes. A primeira foi a edição da Lei Federal
10.639, de 2003, que determinou a obrigatoriedade de ensino da história da
África nas escolas públicas. “Já faz tempo que a lei foi criada, mas agora ela
está em vias de ser efetivamente cumprida. Há certa resistência de parte de
alguns segmentos, que acredito deverão ser vencidas logo”.
A segunda conquista diz respeito ao que ela considera um
grande avanço para a causa dos negros: a vigência do estatuto da igualdade
racial. “Ele traça as diretrizes a serem cumpridas em prol dos interesses da
comunidade negra. Um marco em nossa luta”, comemora.
Outras atividades
Terezinha, historiadora e pesquisadora da cultura negra, é
também presidente da Aponec, uma ONG voltada aos interesses dos deficientes
físicos de Caraguatatuba, que ela ajudou a fundar em 1998 e que vem
desenvolvendo uma importante atividade assistencial no município.
A Aponec também participou da organização do fórum inclusivo
da pessoa com deficiência em Caraguá, que aconteceu no início de dezembro no
Teatro Mário Covas e contou com a presença de centenas de pessoas. Além de palestras
e discussões sobre o tema, houve a eleição dos membros do Conselho Municipal da
Pessoa com Deficiência, o Comdefi, onde a entidade está representada.
Teresinha também é membro do Conselho de Participação e
Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo. Atualmente trabalha
num projeto em parceria com a Petrobras visando a promover ensino de
informática a portadores de deficiência visual.
Ela terminou suas declarações fazendo referência à fibra da
raça negra, lembrando uma tia que, com cem anos de idade, lê sem óculos e ainda
cultiva couve no fundo do quintal, verdura que ela prepara pessoalmente e de
uma maneira muito carinhosa quando recebe algum parente em casa.
Eles ajudam a
escrever a nossa história
Talvez o negro que mais tenha se destacado no cenário
político de Caraguatatuba tenha sido o professor Lúcio Jacinto dos Santos.
Lúcio, que também era corretor de imóveis e pessoa estimada na cidade, aceitou
o convite de Jair Nunes de Souza, outro professor, para concorrer nas eleições
municipais de 1982 ao seu lado na condição de vice-prefeito. Jair virou
prefeito, no período de 1983 a 1988, e Lúcio teve importante papel em sua
administração como um vice que tinha gabinete próprio para despachar e
encaminhar pedidos da população, algo incomum na época. Lúcio chegou a assumir
a prefeitura municipal em algumas oportunidades, quando Jair precisava se
ausentar para representar o município em outras localidades.
Outro fato curioso a respeito da raça negra em Caraguá diz
respeito ao policial rodoviário Fidélis, que chegou a acumular a função de
militar, com todos os seus rigores, com a de modelo masculino. Fidélis desfilou
nas passarelas um corpo um corpo negro esguio, torneado, másculo, levando os
assistentes a reconhecer todo o potencial da raça em termos de estética
corporal. Fidélis ainda trabalhou na Assembléia Legislativa como assessor
parlamentar e hoje caminha pelas nossas ruas como policial militar aposentado;
merecidamente curte as amizades que soube conquistar ao longo de uma vida pautada
pela retidão do caráter.
Tininho, policial civil que há tempo atua em nossa cidade,
goza do respeito e admiração dos amigos; por isso é muito estimado. O pai, seu
Albertino, também popular, teve a sua imagem registrada pelos hábeis pincéis do
artista Haroldo Moisé Di Diaimo e hoje podemos encontrá-la na galeria virtual
que o artista mantém na internet. Nela, os traços que marcam a idade e as
características da raça, pronunciadas, conferem beleza singular ao registro.
Caraguá também se orgulha de outros negros que com seu
trabalho dão exemplo de bons cidadãos, ajudando a escrever a sua história.
Alcinei e Olegário são dentistas muito especiais. Olegário chegou a ser
secretário municipal de destaque na administração Aguilar. Alcinei presta
serviços diuturnos para a população carente do município. Ele trabalha nos
postos de saúde que a prefeitura mantém nos bairros, cuidando a sua saúde bucal
da nossa gente. Também é filho da professora Antonia Ribeiro, muito estimada
por amigos, colegas e alunos e por isso seu nome foi dado em vida para
identificar a escola do Jardim Califórnia, essa que fica no Estrela D’Alva.
Paulo André, urbanista, dedicado funcionário de nossa prefeitura, é outro
exemplo da força do negro em nossa sociedade.
Não, não esquecemos não: o mestre Dionísio é inesquecível.
Era ele quem organizava e encantava nossos carnavais com sua presença forte e
alegre, tornando-os boas e carinhosas recordações nos dias atuais. Outros
negros marcaram sua presença nos dias de Momo, como Zenaide, a grande batalhadora
em prol do sucesso de nossa tradição quando o importante era ser fevereiro.
Estamos falando de samba? Ora, então é preciso lembrar o
saúdo Zé Rodrigues, cantor, compositor e amante da música. O mesmo ritmo que
encantou o Zé Rodrigues, hoje seduz o nosso querido Chocolate. Voz forte, aliás
uma característica do negro, Chocolate até hoje impressiona com a sua
musicalidade. Nesse contexto, não poderia faltar o Pedro Raymundo, cantor,
compositor, poeta, autor de “Limites” e boêmio de nossas madrugadas, com seu
inseparável “seis cordas”.
Na área jurídica temos os doutores Edson e Luís Carlos,
competentes advogados de nossa cidade, sérios no momento do trabalho, mas
pessoas simples, brincalhonas e apaixonantes quando a descontração é a palavra
do momento.
Quando o assunto é a gastronomia, Manu é o nome que nos vem
à mente. Ele é o mestre do cardápio de nossa prefeitura municipal e não menos
que milhares de crianças, que todo dia recebem sua merenda, são testemunhas da
sua competência profissional. Os pratos do Manu, que tentação...
Mestre Zé Baiano é o nome certo quando se fala em capoeira,
uma arte eminentemente afro, ao lado do contra-mestre professor Angolinha, que
também se dedica a danças de origem africana e ao moçambique. São referências
inesquecíveis e exemplos de competência e dedicação àquilo que fazem. Na área
da comunicação, tivemos o programa “Negro em Destaque”, comandada com
desenvoltura pelo primeiro radialista negro de Caraguá, o Ailton Prado, que fez
muito sucesso na rádio Oceânica três ou quatro anos atrás.
Empresários há de sucesso comandando as mais diversas
atividades em Caraguá que se constituem dignas expressões da raça. Delvan, que
também é ambientalista, é exemplo disso, ao lado do proprietário da auto-escola
Obetivo, o Edilson, e do Viriato, que cuida de nossos sofás.
A título de folclore, ainda temos um negro muito conhecido
na cidade nas décadas de 70 e 80, que catava mariscos na costeira para levar
uma vida bem simples. Morador do bairro Ipiranga, todos gostavam do Jajá e
adoravam ter “um dedo de prosa” com ele. O que o diferenciava dos demais era o
tamanho o pé, enorme e esparramado, talvez pelo fato de quase nunca usar
sapatos, preferindo andar descalço mesmo nas ásperas costeiras. As pessoas
contavam que nem ferrão de bagre entrava na couraça do seu pé. Claro,
conversas...
Há tantos nomes... Verinha, ex-presidente do SindServ
Caraguá; Heraldo, compositor, desenhista, autor de contos, músico; a Teresinha,
das ONGs Aponec e Zambô; Cida Barbosa, cartorária; o saudoso Chiquinho
Conceição, que foi vereador em Caraguá; o Neco Butiá, também ex-vereador por
diversas legislaturas...
Não dá para enumerar, tantos são os expoentes da cultura
afro em nossa cidade. Certamente muitos nomes não aparecem aqui por absoluta
falta de espaço, mas são pessoas igualmente importantes ao nosso convívio. Elas
devem sentir-se enaltecidas com este trabalho, que visa reconhecer todo o valor
de uma raça – portanto, o seu valor.
Se é verdade o que a ciência diz, que a África é o
continente onde surgiu a espécie humana, pelos fósseis de hominídeos ali
encontrados e que datam de até cinco milhões de anos, então a conclusão a que
chegamos é que somos todos afro-descendentes, de uma forma ou outra.
Todos irmãos, afinal. E braços dados sempre...
publicado originalmente pelo Caraguablog em 30 de maio de 2011
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