Texto: Luiz Flávio Gomes (www.jusbrasil.com.br)
imagem: http://bocalivre2009.blogspot.com.br/
Em
1910 o estadista francês Georges Clemenceau declarava sua perplexidade pelos
níveis da corrupção em Buenos Aires: “a economia da Argentina só cresce porque
de noite os políticos e empresários estão dormindo e não podem roubar”.
Foto
de Clemenceau, nos anos 20, já aposentado (disponível em Ariel Palacios,
acessado em 6/12/14). Se a economia brasileira anda crescendo pouco, isso
significa que os políticos e empresários envolvidos na corrupção endêmica andam
dormindo pouco, muito menos que “los hermanos” do princípio do século XX.
01.
Hoje, 9/12, se celebra, no mundo inteiro, um dos dias mais relevantes para o
calendário da sociedade civil cidadã (agora globalizada): trata-se do Dia
Internacional de Combate à Corrupção. A data não foi escolhida por acaso, sim,
porque foi nesse dia que as Nações Unidas assinaram a histórica Convenção
contra a Corrupção, em 2003 (conhecida como Convenção de Mérida-México), que
foi parida para estimular todos os países membros a desenvolver e, mais que
isso, a implementar iniciativas que signifiquem efetivo combate à chaga da
corrupção que, diga-se de passagem, não é um fenômeno exclusivamente humano (H.
Schwartsman), visto que já constatada inclusive em vespas e formigas. A trapaça
social (invadir o alheio para aumentar o próprio), como se vê, tem base
biológica. Reforçou-se, com a citada Convenção, a cooperação internacional, em
especial na área das informações sobre movimentações financeiras que sinalizem
os malfeitos cleptocratras (como os da Petrobra$ e do metrô$P, por exemplo). Se
a data 9/12 tornou-se relevante no mundo todo, com maior fortuna deve sempre
ser recordada nos paraísos da cleptocracia, como é o nosso caso (recorde-se:
cleptocracia significa Estado governado – também – por ladrões).
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02.
Dois pontos chamam nossa atenção nesta emblemática (simbólica) data: (a) os
agentes financeiros (bancos, especialmente, casas de câmbio etc.), incluindo-se
os internacionais, como os suíços, já começam a colaborar mais firmemente com
as investigações da corrupção; (b) por lei, a Polícia Federal brasileira se
tornou autônoma (um feito inigualável em termos de América Latina e até mesmo
invejável em nível planetário). Quanto aos agentes financeiros, no entanto,
salta à vista ainda a ambiguidade: de um lado fazem parte das atividades das
organizações criminosas (são também criminosos do colarinho branco), lavando os
dinheiros sujos conquistados ilicitamente nos incontáveis paraísos mundiais da
cleptocracia; de outro, com bloqueios e devolução desses dinheiros depositados
em contas bancárias, mostram-se cumpridores da Convenção Internacional citada.
De dia colaboram com as investigações (ponto positivo), de noite continuam
lavando os dinheiros sujos do mundo todo (ponto negativo).
03.
Não há como controlar (reduzir drasticamente) o “estilo mafioso de ser” dos
paraísos da cleptocracia, salvo (1) pela otimização máxima da transparência (“A
luz do sol é o melhor dos desinfetantes”, afirmou, já quase um século, o juiz
norte-americano Louis Brandeis – 1856-1941) bem como (2) pela
institucionalização da vida pública (efetividade dos órgãos de controle de
todos os poderes). A autonomia que acaba de ser conquistada por lei (Lei
13.047/14, sancionada sem vetos pela presidenta Dilma Rousseff) pela Polícia
Federal (PF), teoricamente, constitui um desses mecanismos institucionalizantes
(tal qual acontece com a autonomia funcional do Ministério Público), tendentes
a tornar realidade o império da lei (que integra um dos quatro eixos dos Estados
civilizados, fundados na democracia real, na economia distributiva, no império
da lei e na sociedade civil cidadã). Com ela, desde logo, o cargo de
diretor-geral da Polícia Federal passou a ser privativo de delegados de
carreira de classe especial. Na prática isso já vinha ocorrendo desde 1995
(antes o cargo era ocupado por militares). Reforçar as instituições da
República, sua independência e transparência, é (enfatizou C. A. Di Franco,
Estadão), “o melhor caminho de defesa da democracia. A lei citada cumpre esse
papel”.
04.
A PF, “órgão permanente de Estado [não de governo], organizado e mantido pela
União [continua a dependência financeira], para o exercício de suas
competências previstas no § 1º do art. 144 da Constituição Federal
[investigação dos chamados “crimes federais”], fundada na hierarquia e
disciplina [princípios organizacionais], é integrante da estrutura básica do
Ministério da Justiça”. A autonomia funcional (agora inequívoca) não se
confunde com a subordinação burocrática (ao MJ). Os delegados federais, responsáveis
pela direção das atividades do órgão, exercem função de natureza jurídica e
policial, essencial e exclusiva de Estado (não de governo). Na prática, isso
significa que a PF não é um órgão exclusivamente técnico (policial), sim,
jurídico (por fazer parte, ao lado do Ministério Público, da Magistratura, do
TCU, da CGU etc. Do poder jurídico de controle de todos os poderes). É
inadmissível, de outro lado, qualquer tipo de interferência de qualquer outro
órgão ou poder nas suas atividades (nesse ponto a autonomia da PF se distingue
completamente das demais polícias do país, que continuam sujeitas à
interferência governamental).
05.
Com a autonomia da PF, de outro lado, fica descartada a ideia de que a polícia
judiciária deveria fazer parte do Poder Judiciário (é assim que funciona nos
países que adotam os Juizados de Instrução, tal qual o sistema anglo-saxão) ou
deveria se subordinar ao Ministério Público, tal como ocorre no sistema
norte-americano (e tantos outros países como Itália, Espanha etc.). Afastados
esses sistemas alienígenas, privilegiou-se a atuação isenta e republicana da
PF, na fase pré-processual. O ingresso na carreira de delegado, privativa de
bacharel em direito, se fará agora por concurso público (meritocracia), cuja
transparência e lisura vai doravante contar com o aval da OAB. Alinhando-se a
outras instituições, exige-se três anos de atividade jurídica ou policial,
comprovados no ato de posse. A regra permite que policiais experientes da
própria instituição possam lograr aprovação para o cargo de delegado de Polícia
Federal. Os ocupantes do cargo de Perito Criminal Federal são responsáveis pela
direção das atividades periciais do órgão (aqui reside a autonomia funcional da
chamada polícia técnica ou pericial).
06.
As alterações legislativas aprovadas, como sublinhou a OAB-SP, “vêm em abono do
aprimoramento da Polícia Federal, cujas garantias revertem em benefício da
cidadania, de modo que a instituição possa cumprir seu papel constitucional,
que é promover a investigação criminal em crimes de sua competência, de forma
republicana e, sempre, com respeito aos ditames legais e aos direitos humanos”.
A questão agora é saber se a PF vai mesmo se comportar como órgão de
Estado.Sabemos que as instituições são feitas por humanos. São esses humanos
que enaltecem ou esfarelam as instituições. As críticas à nova lei (desde sua
tramitação, especialmente emanadas de órgãos do Ministério Público) foram
intensas. Devem ser recebidas não como ataques, sim, como advertências, para
que a cada dia se alcancem novos aprimoramentos institucionais. Em princípio,
soa estranha a existência de “uma PF autônoma”, bem num dos paraísos da
cleptocracia. Isso redobra a responsabilidade da PF, que deve vigiar e investigar
os malfeitos frequentes do paraíso, mas, antes de tudo, vigiar a si própria,
vigiar seus atos, para mostrar que realmente é um órgão de Estado, republicano
(não de governo, muito menos de partidos políticos ou ainda longa manus de uma
ou outra ideologia).
07.
A PF, que já teve incontáveis investigações anuladas pela Justiça (por violação
do Estado de Direito: Castelo de Areia, Satiagraha etc.), ainda conta com
excelente reputação perante a população, em razão dos relevantes serviços já
prestados à nação (num dos paraísos mais rentáveis da cleptrocracia ninguém
diria que um órgão policial fosse capaz de investigar, com independência, os
crimes dos ladrões do colarinho branco, que são os donos do poder). Para se ter
uma ideia do volume do trabalho feito pela PF, basta considerar que entre 2003
e 2014 (novembro) ela promoveu 2.311 operações, contabilizando um total de
24.837 presos, sendo que 2.393 eram servidores públicos e 119 policiais
federais. Veja tabela aqui
08.
Para além de aparar várias arestas internas (seu relacionamento com os demais
policiais federais: agentes, escrivães etc.) e externas (com o Ministério
Público, com a Justiça, com o Ministério da Justiça etc.), fundamental é que a
PF, como órgão de Estado, (1) se esmere no respeito estrito ao Estado de
Direito (regras legais, constitucionais e internacionais que regem o devido
processo legal), (2) não caindo nunca na tentação de dele fazer uso indevido
(abusos cometidos dentro da lei, como é o caso da profusão de pedidos de
prisões juridicamente desnecessárias, que dão ensejo a tiranias: Montesquieu
dizia que toda medida penal desnecessária é tirânica), (3) aprimorando seus
mecanismos de investigação para o ressarcimento dos dinheiros desviados ao
erário (a devolução do dinheiro público e o empobrecimento de todos os ladrões,
especialmente dos poderosos de colarinho branco) e (4) que jamais tenha como
horizonte funcional, em pleno século XXI, o estado paralelo policialesco
(sombra do Estado de Direito), regido pela forma mentis inquisitiva (forma
inquisitorial de pensar e de atuar), que nasceu com o Malleus Maleficarum (O
martelo das feiticeiras), escrito, em 1487, pelos padres Sprenger e Kraemer:
“vamos parar de rir da Idade Média, de suas técnicas de obscurantismo, sempre
eludidas, sempre presentes” (Legendre); a Idade Média inventou uma série de
coisas “com as quais ainda estamos ajustando contas” (diz Umberto Eco) (ambos
citados por Salo de Carvalho, Boletim IBCCRIM 262).
Luiz Flávio Gomes - Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG.
Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a
1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). P.S. - Participe do nosso movimento fim da reeleição (veja fimdopoliticoprofissional.com.br). Baixe o formulário e colete assinaturas. Avante!
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