domingo, 20 de janeiro de 2013

Crítica Teatral - A derrisão crítica dos palhaços esfarrapados

É da natureza do espetáculo de rua impregnar-se da realidade que o circunda. Vide a potencialidade das interferências de passantes, “moradores”, cães, sombra, sol, chuva, etc. E quando a ficção do teatro penetra fortemente o real do centro urbano? Em "Júlia", o grupo catarinense Cirquinho do Revirado representa a história de dois artistas de picadeiro desprovidos de sua casa, a lona que pegou fogo, mas esse mote vira pano de fundo diante do flagelo de quem sobrevive nas ruas da cidade.

Os corpos sujos (ou seriam esfumaçados?), as roupas molambentas, a condição de aleijada da personagem-título, sem as duas pernas, e as presepadas de seu companheiro e assistente Palheta, corruptela de palhaço que é, enfim, são alguns indícios do pacote de significações que ganham outros nexos no semicírculo que ocupa o calçadão. O espectador é como que corrompido pela livre associação com os conflitos do espaço público na sociedade brasileira, como a execução de mendigos, a disseminação das cracolândias e a repressão aos artistas de rua dentro do processo de higienização como o perpetrado contra cortiços de São Paulo no início do século 20 em nome da urbanização, prima da segregação que ainda viceja.
A abordagem sociológica que realçamos diante de um espetáculo francamente popular em seus códigos, a começar pela remissão ao circo, corresponde à qualidade da proposta artística do núcleo de Criciúma. A dupla Reveraldo Joaquim e Yonara Marques (quem os batizou assim foram visionários!) redimensionam o caráter mais cruel dos palhaços sem repisar a interação autoritária da qual alguns dos seus pares se revestem. O lirismo e a contundência crítica estão superpostos no mural de imagens que o espetáculo suscita na praça aberta. Gags, corpos, língua inventada, figurinos esfarrapados, carroça estrambólica, são muitos os recursos operados com domínio de timming na troca com a roda. Os atores-jogadores são metamorfoses ambulantes dotadas de muita energia e coragem para lidar com tais conteúdos, radares sócio-espaciais captando os mínimos detalhes no raio de 360 graus.

Na medida em que Júlia e Palheta evoluem para o número em que ela vai dançar – “a dança da aleijada!”, propaga ele, alfinetando o politicamente correto –, a alegoria desses corpos disformes e desagradáveis, seus penduricalhos içados do lixão, sua descartabilidade repugnante, essas percepções vão sendo assimiladas pelo público sem repugnância, tal um exercício de distanciamento em que a consciência crítica pode transitar em paralelo com o humor desbragado e cujo poder de corrosão pode superar a retórica, por que não?

Conhecido de criações com a Companhia Carona de Teatro, de Blumenau (SC), que inclusive integra o Fentepp com outra montagem de rua, Passarópolis, o diretor Pepe Sedrez respeita a reinação dos comediantes e parece dosar com eles essa capacidade de falar sobre o não dito, de abrir frestas para que o espectador entreleia seus próprios sentidos como aqueles que compartilhamos nestas linhas.

Sob o ponto de vista da linguagem, é sensacional a virada que a dramaturgia do catarinense Gregory Haertel dá quando o desfecho se aproxima e as convenções da representação são implodidas de vez. Ao “revelar” as razões que o movem enquanto artistas de circo, a trupe dessa história faz jus ao nome do grupo que lhe dá vida, o Revirado. O espetáculo reafirma a criticidade como manifestação de cidadania, semeando a discórdia para que cada um dos seus interlocutores leve para casa a reflexão que rima com diversão sem que uma exclua a outra. A alienação que poderia ser suscitada na fuleiragem desses desvalidos é devolvida feito um bumerangue.
Critica da peça JULIA, por Valmir Santos.
Fonte: Assessoria de Imprensa

0 comentários: